sexta-feira, 29 de junho de 2018

Quais os limites da ética acadêmica?


Quais os limites da ética acadêmica? Há alguns anos, leciono cursos de ética para o ensino médio. Nesses anos todos, tento instigar os alunos a pensarem sobre as possibilidades das suas próprias ações frente aos problemas que são colocados pela sociedade atual. Acredito, piamente, que o estudo da filosofia deva ser feito desde as séries iniciais e que, quanto mais pensarmos a ética, maior será a possibilidade de tentar, humanamente, mudar a triste situação que ronda o mundo.
Para isso, acredito que, precedendo os estudos sobre ética, deva se fazer uma exposição e discussão atentas sobre a ontologia, ou seja, pensar o que é o ser humano. Se a filosofia tenta tratar, desde as épocas mais primordiais, o que é o homem, nada melhor do que tirar dos espaços universitários essa discussão e expô-la à sociedade, para que a construção do entendimento humano seja – veja que que maravilha! – pensado por humanos em uma amplitude jamais vista. Talvez essa seja a prática da ação comunicativa de Habermas. Talvez seja apenas uma ilusão – dentre as tantas que eu tenho – sobre possíveis melhorias sociais.
Mas a discussão que quero fazer diz respeito aos limites da ética acadêmica, portanto, a discussão acima, serve apenas de preâmbulo do que quero dizer aqui.
Recentemente, ocorreu na UFRGS um grande debate sobre o uso de animais em testes de laboratório. A discussão foi intensa, calorosa, resultando em uma participação docente e discente sem precedentes. Podemos usar – ou melhor, poderiam os cientistas – animais para o desenvolvimento da ciência? Se os animais são considerados seres sencientes, ou seja, capazes de percepção através dos sentidos, podemos privá-los da liberdade em favor da ciência? Tenho um grande amigo, Douglas Senna, neurocientista, que em sua pesquisa de doutoramento utilizou vários camundongos e, anos depois, em uma conversa comigo, defendeu um processo de humanização da utilização dos animais. O seu argumento era a precariedade das técnicas e dos instrumentos para a pesquisa com animais, o que resultava em um gasto desnecessário de animais, em termos quantitativos. Entretanto, salientava que havia uma necessidade do uso, levando em consideração que a reação biológica, natural, dos animais não podia, ainda, ser observada em programas de computador ou então em animais sintéticos, feitos com borracha e sistemas automotores. A discussão é imensa e vale a pena dar uma olhada nos novos artigos, que vêm sendo constantemente publicas nas revistas acadêmicas ao redor do mundo.
Mas como essa coluna não é científica, limito-me às considerações filosóficas, utilizando como exemplo o brilhante filme O experimento Milgram, de 2015. Stanley Milgram foi um estudioso da psicologia social que, nos Estados Unidos dos anos 1950 até 1980, pesquisou o comportamento humano a partir da ação humana em situações em que a autoridade era impositiva. Explico: ele queria saber como as pessoas reagiam em situações em que eram mandadas executar algo que causava dor no outro. O teste criado pelo Professor Milgram consistia em pegar um sujeito desconhecido, americano comum, e colocá-lo em um experimento em que receberia o título de “professor”, devendo obedecer um roteiro em que ele faria perguntas a um suposto “aluno”. Cada vez que este errasse, aquele deveria apertar um botão que emitia um choque no “aluno”, para castigo pelo erro. O choque aumentava sua intensidade cada vez que o aluno errava.
Problema: o Professor Milgram foi acusado de falta de ética acadêmica no experimento. O suposto “aluno” era membro da equipe de pesquisa; o “professor” era o objeto de pesquisa. Eles eram colocados em salas separadas e o “professor” recebia um choque, de pequena voltagem, apenas para saber como era a primeira intensidade da carga elétrica. O “aluno” ficava na outra sala e não recebia choque algum. Apenas uma gravação de áudio emitia expressões de dor a cada resposta errada (eram todas) e a voz pedia, constantemente, para que parassem os choques. Ou seja, o “professor” era enganado, achando que o “aluno” estava sofrendo, o que não era verdade. O final do experimento era o momento em que se explicava ao objeto de pesquisa, o “professor”, que tudo não passava de uma encenação e que estava tudo bem.
Baseaava-se fortemente na análise de Hannah Arendt sobre o julgamento de Adolf Eichmann, oficial nazista que, após o final da II Guerra Mundial fugiu para a Argentina e, sendo descoberto, fora levado a Jerusalém para ser julgado por um tribunal hebraico pelos crimes contra os judeus durante o Holocausto, acabou por dar origem ao livro “Eichmann em Jerusalém” e a criação do conceito de “Banalização do mal”. O objetivo da pesquisa do Professor Milgram era descobrir se as pessoas têm tendência em obedecer quaisquer ordens, desde que vindas de algum superior. Os participantes do experimento, mesmo que quisessem parar de dar os choques, escutavam ordens de um outro pesquisador que ficava na sala, dizendo-lhe que era sua função aplicar o teste e dar os choques. O resultado é que a maioria, mesmo a contragosto, acabava por executar o que era pedido.
A acusação sobre a falta de ética veio porque alguns participantes acabaram por ficar psicologicamente abalados ao descobrir sua tendência a cometer atos cruéis contra pessoas desconhecidas. Por que não se levantavam e iam até a outra sala, salvar o “aluno”, dando um fim a um experimento que causava dor? As pessoas ficavam perplexas ao confrontarem-se com suas ações que poderiam ser consideradas obscuras e desumanas.
O filme retrata, de maneira bastante clara, tanto os experimentos quanto as teorias do Professor Milgram. A atuação de Peter Sarsgaard é muito boa e a direção usou o recurso técnico em que o Professor Milgram fala com o expectador, explicando ao público a base de sua teoria. Também mostra suas defesas sobre suas próprias pesquisas.
Ética é um tema antigo, mas que permanece sempre atual. Mostra a necessidade de cada vez mais discutirmos ética nos mais variados sentidos. E nos leva a questionar: a ética acadêmica, o uso de pessoas (ou animais) em experimentos é aceitável ou não? E você, leitor, qual sua opinião sobre esses usos científicos com animais ou com seres humanos?

sábado, 5 de maio de 2018

O Nobel de Drummond




Ano passado tive longas conversas com um colega de instituição, Thiago Cruz, quando nos encontrávamos na sala dos professores. Ambos somos admiradores da literatura e um autor que nos une é Carlos Drummond de Andrade.
Ler os poemas de Drummond tem o mesmo efeito em mim que a cachaça para o desesperado: acalma, tranquiliza, alegra e revolta, tudo ao mesmo tempo.
Recordo-me a primeira vez que li Drummond de maneira consciente. Acabara de iniciar o Ensino Médio e uma das primeiras aulas que tive com o maravilhoso professor Marco Aurélio (que, além de não me recordar o seu sobrenome, infelizmente, nos deixou rápido, por ter passado em um processo de seleção de mestrado e trilhar estudos acadêmicos – evoé!). Ele nos fez ler “A balada do amor através das Idades”, com um início maravilhoso, que nunca me saiu da memória: “Eu te gosto, você me gosta / desde tempos imemoriais. / Eu era grego, você troiana, / troiana mas não Helena.”
É um poema fantástico, conta a história de um mesmo casal que, devido às pressões sociais dos contextos históricos, sempre acabava separado. O grego que não podia ficar com a amada porque ela era troiana; a plebeia que não podia ficar com o amado porque o leão os comera na arena dos gladiadores; assim ia, até chegar a um casal que se beijava em Hollywood. Mais do poema, vá lê-lo!
Sempre achei-o belo. Nunca mais pude esquecê-lo.
Drummond me acompanha desde então, seja quando ao léu decido pegar uma página qualquer, seja para usar alguma camiseta que possua um poema seu na estampa.
O que ocorre é que duas histórias sobre Drummond me vem à cabeça. Sobre as duas, não garanto nenhuma veracidade; por isso essa crônica talvez se torne mais uma exposição de algo falacioso do que uma informação. Já está avisado. Em determinados momentos, me dou a possibilidade de divagar sobre as invencionices popularescas.
A primeira delas é sobre o recebimento de uma tese, nos anos 80, sobre sua obra. A autora teria enviado o trabalho final para o próprio poeta, que teria lido atentamente. Muito cortês (quando ouvimos sua voz nas gravações antigas podemos notar que ele devia ser um homem repleto de cortesia), escreveu uma carta para a pesquisadora: “Muito obrigado pela lembrança. O texto está bem escrito. Infelizmente, eu não concordo com nenhuma de suas análises sobre a minha obra”, teria sido mais ou menos o que ele escrevera.
Às vezes, esses problemas de interpretação surgem dentro do ambiente acadêmico: o autor da pesquisa busca em sua fonte somente aquilo que ele já acreditava ser a resposta desde antes da análise.
Mas vamos ao Nobel, que é a segunda história. E a que eu mais gosto.
Ouvi certa vez – e li em alguns lugares, depois de uma rápida pesquisa na internet – que seu tradutor para o sueco, com boas relações no comitê que outorga o prêmio Nobel, teria entrado em contato com Carlos Drummond de Andrade. Afirmava o homem que o seu nome era certo para o Nobel de Literatura. Mas era preciso uma tarefa: que o poeta lhe enviasse a relação de todos os seus livros, edições nacionais e internacionais. Drummond teria agradecido, mas negara-se a colaborar, porque não gostava de prêmios e porque afirmava que o merecedor brasileiro era Jorge Amado.
Se isso tudo é verdade ou não, eu não sei. Mas são boas histórias.
O que acontece é que eu gostaria muito que Drummond tivesse ganhado o prêmio. Foi essa a discussão que tive com meu colega Thiago. Para ele, os poemas são feitos para que as pessoas os leiam e que aquilo tenha um significado para cada um, seja uma experiência pessoal; por isso o Nobel não significa nada, de fato, para um poeta como Drummond. Acho que era mais ou menos esse o seu argumento, se não me falha a memória.
Concordo que o prêmio não muda a importância da obra, mas eu acredito que mais pessoas, no mundo todo, poderiam ter acesso à poesia de Drummond se ele tivesse sido escolhido. Lembro-me de ter lido em Leminski que escrever em português ou ficar em silêncio é a mesma coisa no universo. Drummond não ficou tão conhecido mundialmente e eu acho isso uma pena.
Um Nobel não dá grandeza ao escritor (mesmo porque Borges e Cortázar, que certamente mereciam, não o levaram), mas faz com que mais pessoas o leiam. Exemplos: Svetlana Aleksievitch não era publicada no Brasil, e hoje discute-se muito sobre obra, que de fato é fundamental, como faz, por exemplo, o meu amigo Arthur Telló em suas aulas na PUCRS; Patrick Modiano eu não conhecia, e hoje adoro seus livros e, mesmo não tendo experiências como as que ele teve sobre o processo de ocupação nazista na França, consigo perceber a angústia que ronda seus personagens; Coetzee conheci pela lista dos laureados quando lia sobre o tema, e acredito que o seu livro “Juventude” é um dos textos que mais me marcaram; Wislawa Zimborska, uma poetisa da mesma altura de Drummond, ficou mundialmente conhecida após o Nobel, e isso foi precioso porque sua poesia é necessária.
Porque fala de nós, humanos, de maneira dura, crua, bela, limpa, real, ou seja, perfeita, Drummond deve ser lido. Tendo um Nobel ou não. Mas deveria ter.

sábado, 14 de abril de 2018

Precisamos salvar Machado de Assis



Começo essa coluna por uma historieta retirada do belíssimo livro de Italo Calvino, Por que ler os clássicos, que por sua vez afirma que retirou de um livro de Cioran, sobre Sócrates antes da sua morte. Disse que antes de morrer, “enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que lhe servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’”, teria respondido o grande filósofo. E por que citar essa passagem nesse momento? Pelo fato de que perguntaram para Calvino sobre os possíveis motivos de se ler um clássico, ao passo que sua mais convincente resposta é: “a única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos”.
Mas essas passagens, obviamente, são poéticas e para um possível mundo prático – esse famigerado século XXI que vivemos – essas respostas não fariam muito sentido. Acostumando que estou a lidar com alunos na adolescência ou início da vida adulta, a maior parte deles – vejam, digo a maior parte, não a totalidade e nem uma pequena parcela; não fomento extremismos de debate – voltando: a maior parte deles não tem interesse em ler clássicos da literatura, seja mundial seja brasileira.
É que o problema, para mim, é maior: a maior parte deles não quer ler. E o que quero dizer com isso é que a literatura está longe deles, é alheia àquilo que eles querem discutir no momento e, principalmente, não parece estar relacionada com a moral cidadã do novo século. Explico: eles aprendem que não é necessário ler para ser um grande sujeito nos dias de hoje, e ser um grande sujeito é simplesmente entrar dentro de uma roda que está circulando e dar continuidade ao seu movimento. Em outras palavras, cada vez mais os jovens querem apenas adequar-se às novas profissões do momento, manter suas redes sociais ativas e aproveitar os finais de semana da maneira mais festiva possível. E eu não estou aqui me colocando contra essas posições, muito pelo contrário, sempre acreditei na vida enquanto uma eterna busca pelas realizações pessoais que pudessem encaminhar para uma felicidade efetiva. Mas hoje, como costuma-se brincar, criticando as redes sociais, é melhor se ter uma vida feliz no Facebook e no Instagram do que de fato viver de maneira feliz em suas ações pessoais.
Mas o que isso tem a ver com literatura ou com Machado de Assis, que aparece no título desse texto?
Vejamos: Machado de Assis é considerado um autor maravilhoso para muitos estudiosos, para muitos intelectuais, para muitos. Alberto Manguel, que é um leitor voraz (fora os “olhos” de Jorge Luis Borges em sua juventude, quando o grande escritor argentino já estava cego) e também um excelente escritor, tanto de obras de ficção quanto de crítica literária, sempre afirmou que Machado deveria ser muito mais lido na América Latina, porque foi um dos principais autores que lera em sua vida e um precursor fundamental do que a América Latina produziria no século XX. E não podemos negar que nossas instituições educacionais fazem um trabalho que garante que os alunos das escolas escutem, pelo menos umas 5 vezes em sua vida escolar, o nome de Machado de Assis. Mas será isso o suficiente ou o certo a se fazer?
Penso que a literatura tem um poder transformador pessoal que é fabuloso. Tanto quanto a arte de um modo geral. Não há como passar incólume à construção artística em seu modo mais potente, como, por exemplo, a belíssima letra que diz que “respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada”. Se já sabemos que a arte existe porque a vida não basta, acredito piamente que toda boa literatura é ontologia. Toda boa literatura nos explica melhor do que qualquer outra forma de construção cognitiva. E Machado de Assis era um filósofo, travestido de escritor brasileiro. Ele é o clássico nosso de cada dia, que nos expos de uma maneira que ninguém fez antes e poucos outros fizeram depois em território tupiniquim. Portanto, ele é aquele que tem que ser lido, porque é melhor lê-lo do que não lê-lo.
Mas o que estamos fazendo nesse país, de um modo geral, está indo contra o que a literatura precisa. Frente a uma educação de tão pouca qualidade, seja pública ou privada, estamos perdendo a batalha para os diversos interesses que os jovens têm nesse momento e que estão ligados a um mundo tecnológico. Vocês, meus caros leitor e leitora, acham mesmo que um jovem de 16 anos quer saber o que é “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”? Pois posso lhes garantir que dessa oração, os alunos não sabem o que são 75% das palavras presentes. Sou pessimista nesse ponto e acredito que a única palavra compreensível para um aluno nessa idade é “olhos”.
Eu creio que o trabalho atual deva passar por um revolução no ensino da literatura. Esta deve ser fomentada, instigada no aluno. Mas não da forma como ofereceram à minha irmã quando estava buscando uma escola para as minhas sobrinhas. A coordenadora de ensino veio toda feliz anunciar que eles tinham um programa de incentivo à leitura muito bom. Consistia em dar uma medalha ao aluno que mais lesse livros e que estivesse registrado na biblioteca da escola. Cada vez que o aluno pegasse um livro, ficaria registrado. O aluno com mais registros ganhava a “medalha de leitor do mês”. Como se quer tratar a arte como se tratam as coisas todas no nosso mundo moderno: através da competição? Pergunto-me onde foi parar a ética nesse momento. Como uma instituição de ensino pode errar tanto, ao fomentar uma competição, acreditando que a literatura pode ser mensurada na vida de uma pessoa através do número de livros que ela lê por mês? E aqueles leitores iguais a mim, que demoram-se às vezes mais de 30 minutos em uma só página? Por essa instituição, saí perdendo. Por mim, na minha percepção, saí ganhando. São visões distintas sobre as coisas todas.


Mas então essa revolução se constituiria de quê? Acredito que em um país como o nosso, em que as pessoas não leem, o ideal seria começar a fomentar a leitura pessoal a partir do gosto. Gosto do movimento de um colégio que conheço em que as leituras dos alunos são “Maus”, de Art Spiegelman, “Persépolis”, de Marjane Satrapi, ambas graphic novels. E não para por aí: também leem alguns textos de Tolstoi, “É isto um homem?”, de Primo Levi, ou então “Terra Papagali”, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. São textos que podem interessar mais aos alunos do que “Senhora”, de José de Alencar.
Mas vejamos bem: não estou dizendo que José de Alencar não deva ser lido. Ou então Macunaíma ou os romances de Machado de Assis. Apenas estou tentando afirmar que os nossos alunos têm de começar a ler por gosto. É preciso que eles consigam perceber na literatura as possibilidades de um mundo novo. De um mundo prazeroso. Eles têm de notar que pode-se às vezes gastar uma hora do tempo lendo as aventuras de “Game of Thrones” ou de “Harry Potter” já que eles gastam mais do que esse tempo apenas fazendo a rolagem de um aplicativo de celular para dar joinhas e corações em fotos. A literatura exige, muitas vezes, maturidade. E os clássicos precisam de uma maturidade maior ainda. Machado de Assis é um desses casos.
Meu exemplo: li Machado quando estava no Ensino Médio e lembro-me que tinha gostado bastante. Mas já lia muito naquela época. Meus amigos, em sua maioria, não tinham tido a mesma percepção que eu do texto machadiano. Entretanto, quando estava no mestrado, com um pouco mais de tempo, resolvi reler Machado para desestressar das agruras da pesquisa que eu sofria. Recordo-me efusivamente que tive que parar constantemente a leitura de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” porque não podia segurar o riso. Gargalhava, na verdade. Para mim, Machado tem uma ironia como muito poucos conseguiram ter. Ele criticava a sociedade carioca do século XIX, colocando-a em situações risíveis a partir de seu traço irônico, e a sociedade não tinha a menor ideia de que isso estava acontecendo. De um brilhantismo sem igual, Machado soube fazer a melhor análise sociológica sobre o Brasil e, principalmente, o Rio de Janeiro do século XIX. Mas eu só pude fazer isso porque reli Machado quando estava com 23 anos de idade. E porque já era leitor. E, talvez, porque nunca me dei muito bem com a tecnologia.
Mas o que importa, de fato, é que façamos que as pessoas tenham acesso à literatura, tentando demonstrar que ela pode ser um mundo incrível, de aventura, de amor, de maravilhas, de aprendizado, de tudo o que se possa imaginar. Se conseguirmos fazer com que as pessoas percam o medo da leitura – ou, pelo menos, não vejam na leitura uma inimiga de suas redes sociais – já faremos com que as gerações futuras saibam e gostem de ler. E instigando cada vez mais os mistérios da literatura, devemos discutir a necessidade de ler os clássicos, porque se são clássicos, são necessários para o entendimento do que é o ser humano. Não adianta falar de Shakespeare para quem nunca leu nem uma coluna de jornal ou um gibi. Será como tentar explicar a existência dos números inexistentes para quem não sabe fazer uma simples regra de três.
Isso tudo faz parte de um processo. É a construção de formiguinha. Ou do tijolinho após tijolinho, fazendo a base até chegar ao teto. O que importa é que cada um de nós – os que lemos e vemos beleza na leitura! – tentemos das mais diferentes maneiras (menos a impositiva!) demonstrar que a literatura pode ser encantadora. Que tal falarmos de Segundo Reinado e sua crise a partir do livro “O Xangô de Baker Street”, de Jô Soares, que fez simplesmente, em meio a crise do Império brasileiro, aparecer em nossas terras Sherlock Holmes, para resolver casos praticados por um serial killer? Depois disso, que tal mostrar o que acontecia nessa sociedade, demonstrando todas ruínas humanas causadas por pessoas estranhíssimas, a partir do que um sujeito que já morreu tem a dizer? Basta indicar o “Memórias Póstumas...”, do nosso Machado.
Da mesma forma que as ciências humanas notaram que era preciso uma integração de disciplinas no século XX para poder fazer uma compreensão mais plural sobre as ações humanas, talvez seja necessário para salvar os clássicos da literatura a uso de uma primeira fase, baseada no encantamento literário nos alunos, para a partir daí irmos construindo nosso teto de nossa própria casa. Machado sobreviverá sempre porque no mundo, frente às catástrofes, sobrevivem sempre as baratas e as boas histórias. Mas nós podemos ajudar a salvar o mundo dos perigos expostos em “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, quando os livros começaram a ser queimados porque ameaçavam a organização política existente, afinal, os livros fazem os homens conhecerem coisas e pensarem. Como faremos isso? As maneiras são várias. Comecemos a discuti-las. Comecemos a pensá-las. Eu faço minha parte quando não deixo as opiniões rasas sobre Machado de Assis dominarem uma discussão perto de mim. A famosa ideia de quem leu obrigado pelo sistema de ensino, quando era adolescente, e formulou uma opinião negativa sobre Machado, para mim está totalmente equivocada sobre como funciona a própria construção do conhecimento.
É necessário, pois, salvar Machado, de alguma forma, mas que seja urgente.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Negação do passado

Como um sujeito que passa – e ganha! – a vida problematizando sobre a organização das pessoas em sociedade, nunca deixei de me atordoar quando lia o questionamento de Jürgen Habermas: como foi possível o Holocausto após o Iluminismo?
O questionamento tem seu impacto; seja ele retórico, seja reflexivo. Esse evento constitui-se como um dos momentos mais difíceis, para mim, de relatá-lo nas aulas que ministro.
Um conjunto que engloba um saco de bobagens racistas, com um monte de incompreensão, saturado de irracionalidade. Tudo isso, com um toque de bilhões de dólares gastos para matar pessoas.
(Não neguei nunca, sou um humanista inveterado – no sentido da crença na possibilidade de melhoria social a partir da possibilidade de uso da razão do ser humano, o que por vezes pode ser encarado como uma ilusão – e não posso compreender o sentido e a existência da defesa do belicismo).
Recordo sempre do maravilhoso filme “A vida é bela”, do italiano genial Roberto Benigni. Acho que com essa história o ator, diretor e roteirista realmente se equiparou – como li na época do lançamento – a um Charlie Chaplin, versão moderna. Ele trata o tema da II Guerra Mundial de uma maneira poética que nos aponta a tristeza humana, e também a possibilidade de salvação pela poesia, pela alegria, pela esperança e pela vontade de melhoria.
Há mais ou menos dois meses, vi no cinema o filme “Negação”, com Rachel Weisz no papel principal. Um filme fortíssimo porque expõe uma doença incurável até agora: a falta de humildade suficiente para assumir erros do passado. O existencialismo passou, as novas gerações – e é possível que mesmo as velhas gerações – não sabem quem foi Sartre; e sua ideia de liberdade consciente, de responsabilidade sobre as ações pessoais, infelizmente, não tocou muita gente. (E foi porque não se quis, nem os homens, nem as políticas educacionais dos governos demasiadamente humanos. Ou seja, não se pode culpar apenas o fato de Sartre não ser tão bom escritor, no que tange sua estética literária).
Voltando ao tema: o filme, baseado em um julgamento real, conta a história de uma professora americana, Deborah Lipstadt, judia, que estudava o Holocausto. Ela se vê envolvida em um processo judicial na Inglaterra, iniciado por um pesquisador autodidata sobre o mesmo tema, David Irving, interpretado por Timothy Spall, mas com uma posição contrária: ele defendia um revisionismo histórico que demonstrasse a impossibilidade das câmaras de gás nos campos de concentração e da morte dos supostos 6 milhões de judeus.
O motivo do processo: a professora teria desqualificado as obras do pesquisador e, desde então, as editoras lhe fecharam as portas; por isso ele se encontrava com dificuldades financeiras, haja vista as publicações serem a base de seu trabalho.
Um advogado respeitado da Inglaterra, interpretado por Andrew Scott, procura a professora, oferecendo-se para representá-la, juntamente com outro advogado importante, brilhantemente feito por Tom Wilkinson. Mas há um problema: no sistema jurídico inglês caberia a ela, a acusada, comprovar sua inocência e não ao sujeito autor do processo a culpabilidade dela.
O que era para ser um julgamento sobre acusações pessoais, torna-se um tribunal sobre a história. Teriam ou não existidos, de fato, os campos de concentração nazistas? Os judeus foram mortos nas câmaras de gás? O que os historiadores – e os escritores que publicaram livros sobre o tema, a exemplo de Primo Levi – disseram ao longo dos anos está coerente com uma possível verdade histórica?
Conseguirá ela demonstrar que o Holocausto matou tanta gente ou ele provará as falhas numéricas e estruturais dos supostos canais de gás nos campos? Segundo ele, há provas cabais para tais afirmações.
Em um mundo em que a cada dia comprovamos a máxima (lembrada há poucos dias pelo meu amigo, e também historiador, André Sarkis, que me serviu como um tapa na cara em um momento em que eu usava a retórica contra os absurdos irracionais dos nossos tempos): a história não significa evolução. Isso já sabem os bons historiadores teóricos durante o século XX, quando criticavam justamente os positivistas do século XIX.

“Negação” se torna um filme necessário para que pensemos como nós lidamos com o passado, ainda que o filme, em estrutura rítmica, tenha algumas falhas, deixando-nos cansados em algumas cenas. Mas sua discussão é, a meu ver, fundamental, afinal Brecht estava certo ao afirmar que “a cadela do fascismo está sempre no cio”.



(Publicado originalmente em Jornal Opa! em 18/maio-2017. Disponível em: http://www.jornalopa.com.br/site/colunista/visualizar/id/256/?Negacao-do-passado.html)